sábado, 25 de outubro de 2014

O ASSASSINO DO GENERAL HUMBERTO DELGADoO

    Eram quase três da tarde em Badajoz naquele dia 13 de Fevereiro de 1965. O general Humberto Delgado e a sua secretária, Arajaryr Campos, encontravam-se na estação de comboios e ele, mesmo sem haver sol, encontrava-se de óculos escuros e com um cachecol a tapar-lhe quase todo o rosto. A grande figura da oposição ao Estado Novo estava prestes a partir para uma reunião que julgava determinante para derrubar o regime. A ansiedade já devia ser grande quando viram aproximar-se o homem que haviam conhecido apenas umas horas antes, "o Dr. Castro e Sousa" Ernesto Lopes Ramos (seu nome verdadeiro). Cumprimentaram-se, saíram discretamente da plataforma e, fora do edifício, encaminharam-se para o Renault Caravelle que o homem estacionara ali perto. Delgado sentou-se ao lado do condutor. Atrás, a sua secretária brasileira tentou atenuar o ambiente tenso, com conversa de circunstância.
    A tensão era facilmente explicável: dirigiam-se a uma reunião secreta com um grupo de oficiais do Exercito Português que prometiam apoiar o General num golpe contra o governo de António Oliveira Salazar. Pela estrada entre campos não passava vivalma. Ao fim de alguns quilómetros a secretária anunciou o que todos desejavam: avistara um carro verde! Um pouco atrás, fora da estrada. Entusiasmado Delgado confirmou ter visto um Opel Record verde-escuro, exatamente igual ao que o Dr. Castro e Sousa dissera pertencer ao coronel com quem se iam encontrar. O Renault fez marcha atrás, parou, arrancou, saiu da estrada e entrou por um caminho de terra batida. Adiante uns homens esperavam-nos. Uma pequena clareira protegida por um cerro parecia o cenário quase perfeito para um encontro secreto.
     Logo que o carro parou, Humberto Delgado saiu e dirigiu-se ao coronel. Este começou a avançar em sua direção. Coxeava um pouco. Foi então que tudo se precipitou: Delgado viu aproximar-se um homem enorme de gabardina branca. A aparência não permitia dúvidas: não se tratava de um oficial do Exercito Português. Delgado interpelou o desconhecido, mas já era demasiado tarde, a última imagem que terá visto foi o olhar do homem que o assassinou a tiro, Casimiro Monteiro, chefe de brigada da polícia política do regime, a PIDE. O Dr. Castro e Sousa, que o conduzira à cilada, era o subinspetor Ernesto Lopes Ramos, que tivera o apoio do chefe de brigada Agostinho Tienza.
     A PIDE eliminara o mais perigoso opositor ao regime. O “coronel que coxeava” (o inspetor Rosa Casaco) ordenou logo que matassem a secretária que estava aos gritos. O seu corpo foi atirado para junto do de Delgado, na mala do Opel verde-escuro.
   Casimiro Monteiro entrou na História de Portugal deste medonho modo, com o crime de Badajoz. Porém, a sua história começou a muitos milhares de quilómetros de distância dali, a 28 de Dezembro de1920 em Goa India localidade onde nasceu.

SEMINARISTA, DESERTORE LEGIONÁRIO

Casimiro Emérito Rosa Teles Jordão Monteiro era descendente de Joaquim Teles Jordão, brigadeiro, que no século XIX fora um absolutista fervoroso, lutou ao lado de D. Miguel na guerra civil contra os liberais. Foi um dos governadores da, então, infame Torre de S. Julião da Barra, que funcionava como prisão e palco de torturas. A sua reputação era tal que quando foi preso e reconhecido em Cacilhas, o executaram imediatamente. O pai de Casimiro, José Teles Jordão Monteiro, nasceu em Valpaços, seguiu a carreira militar. (tradição familiar) Chegou a 2º sargento e foi destacado para a India, onde casou com Maria Alves Castro, tiveram sete filhos sendo Casimiro o mais novo.
    Quando completou a escola primária entro para o seminário, mas não tardou a aborrecer-se. Trocou a batina pela farda e deu-se como voluntário para o Exercito Português, mas também se cansou, a disciplina não era para ele. Desertou, escapou para a India, então colónia Britânica.
     De navio, fugiu para Marrocos onde ironicamente volta a envergar uma farda, a da legião Espanhola. Um porto de abrigo para fugitivos. Do Norte de África seguiu para a Europa. Em 1938, a guerra civil Espanhola precisava de todos os homens válidos. Quando nesse ano foi feita uma lista com os nomes de todos estrangeiros presentes naquele corpo militar, o seu apareceu entre os 70 portugueses que treinavam na bandeira de depósito. Um dia sem mais explicações enfiaram-nos num camião e enviados para a linha da frente na sangrenta batalha do Ebro. O assassino de Humberto Delgado tinha 18 anos.

 RAPTOS E VIOLAÇÕES
   
     Depois da guerra ficou por Espanha, fixou residência em Barcelona. Em 1941, vários dos seus amigos e camaradas alistarem-se na divisão azul (unidade falangista que iria lutar contra a união soviética a favor de Hitler). Enquanto esses homens juravam fidelidade a Hitler, Casimiro Monteiro envolveu-se em sarilhos. Preso, foi conduzido ao posto de Vilar Formoso e entregue à PVDE em 1941 (antecessora da PIDE). Ficou detido durante duas semanas. Libertado, viveu em Lisboa discretamente para reaparecer em 1943 em Inglaterra a trabalhar como talhante, tendo casado com Della King, com quem teve2 filhos. Tinha um part-time como informador da Scotlad Yard, rapidamente passou de informador a cúmplice dos criminosos. Tornou-se membro de uma quadrilha de assaltantes acabou por ser preso e condenado a 18 meses de prisão. A mulher abandonou-o e levou os filhos.
      Em liberdade levou uma vida errática, sem residência fixa e envolvido em negócios obscuros. Assumiu uma identidade falsa (Emmer Ullah) supostamente filho de um paquistanês. Em 1950 com a nova identidade obteve nacionalidade Britânica. Tinha construído toda uma personagem, faltava-lhe uma companheira à altura, encontrou-a na pessoa de Joan Raymond de nacionalidade inglesa. Tornaram-se companheiro na farsa que Casimiro montara, iniciaram uma vida dupla em que Emmer andava em viagens de negócios entre Londres e a India.
    Em Outubro de 1952 foi implicado num assalto a uma ourivesaria que correu mal um dos empregados foi assassinado. A polícia tentou prende-lo, mas ele fugiu para Bombaim, com Joan e um filho que nascera entretanto. Desta cidade foi para Goa.
   No retorno à terra natal, voltou à sua verdadeira identidade. Casimiro ressurgiu. A mulher continuou a chamar-se Joan com o apelido Ullan, só que não foi adquirido pelo casamento falso, mas herdado do pai, passou a ser uma inglesa nascida em Calcutá.

       O DEMÓNIO DE NARAKASSUR

   Graças às suas ligações na sociedade Goesa conseguiu evitar ser punido pela deserção do Exercito, anos antes. Terá narrado a sua vida com feitos gloriosas durante a guerra. Explorou uma concessão mineira com poucos lucros, até 1953.
     Apresentou-se para lutar contra o movimento goês que contestava a soberania portuguesa. Em 1954 foi integrado como agente de 2ª classe na Polícia do Estado da India, onde seu irmão Aníbal já servia. Dois anos mais tarde foi louvado pela sua atuação numa operação onde foram capturadas armas roubadas e abortado um atentado bombista. Promovido a chefe de brigada, em 1958 era considerado um dos melhores elementos da luta contra os “terroristas”. Mas entre a população era conhecido por cometer toda a espécie de crimes.
    Em 1958 estava no auge da sua carreira. Vivia com Joan e os dois filhos numa doa casa e com uma fortuna que aumentava exponencialmente. Mas quando fez uma viagem a Lisboa acompanhado pela família, foi denunciado, por alguém que o conhecia bem, porque não só referiu, os seus crimes cometidos na India, como como também o seu passado como assaltante no Reino Unido. Quando um dia passeava na Trafaria, foi interpelado pela polícia, e preso. Entrou na cadeia do Aljube a 22 de Outubro de 1958, quatro meses depois das eleições a que Delgado se candidatou.
Em Goa foi aberto um inquérito aos seus crimes, a pouco e pouco, as vítimas foram-se apresentando, para relatar o que haviam sofrido. Em poucos dias havia 72 testemunhas entre elas, havia subordinados que delataram a atividade criminosa de Casimiro. Dizendo-se alvo de ameaças de morte e acusando-o de se ter apropriado de contrabando apreendido. A lista de crimes de que iria ser acusado incluía: homicídio, extorsão, rapto, violação, sevicias, abuso de confiança, agressão, abuso de autoridade, usurpação de terreno, contrabando, destruição de propriedade, apreensões em proveito próprio de armas, munições e produtos de contrabando. Foi também mencionada uma apreensão feita durante o carnaval de 1957, várias barras de ouro foram confiscadas a três contrabandistas e entregues ao chefe de brigada Monteiro que nunca as depositou.
   Pior que tudo, a sua violência era constante, justificando um elevado Nº de mortes sempre da mesma forma “o suspeito tentou fugir”. Concluído o relatório foi enviado para o ministro do ultramar- com cópia para o próprio Salazar- salientando que em Goa. “Falar-se em Casimiro Monteiro era o mesmo que falar-se no diabo”
   Na empresa Goesa a sua queda foi saudada como o fim de um reinado de terror. Para evitar o seu nome era mencionado como: o demónio de Narakassur, que na mitologia hindu lança a morte sobre os humanos. Casimiro enfrentava a perspetiva de passar muito tempo atrás das grades. Mas, contra todas as expetativas, tirou partido da situação e aproveitou o tempo passado entre os presos para os espiar e se tornar informador da polícia secreta.

        DE PRESO A TERRORISTA. DE TERRORISTA A PIDE

      A 15 de Abril de 1959 foi transferido para a Casa de Reclusão do Governo Militar de Lisboa. Solto pouco depois, ficou a aguardar julgamento em liberdade, impedido de voltar a Goa. Mas a partir de sua casa em Queluz, começou uma campanha para limpar o seu nome e denegrir os seus acusadores do Estado da India. O seu irmão Aníbal também se envolveu nessa campanha, mas acabou por ser preso e expulso da corporação por ter forjado documentação falsa contra os seus superiores e o próprio governador- geral.
     Apesar de todas as provas contra Casimiro a PIDE começou a intervir no sentido de desacreditar as acusações. Em dezembro de 1961 a Índia invadiu e anexou Goa, Damão e Diu ao seu território, colocando em causa muitos dos elementos da acusação, quando em Dezembro de 1963 foi presente ao tribunal de Santa Clara foi absolvido.
    Em 1964 tentou ser reintegrado nos quadros da polícia portuguesa com o seu antigo posto, obtendo apenas indiferença para o seu pedido. Mas pelas mesmas razões que lhe recusavam um posto na polícia em Portugal, foi recrutado por Hermes de Oliveira e enviado numa missão secreta a Goa Operação Mamasté. O objetivo era lançar o caos no território e abalar a anexação indiana.
   No antigo território português, além de organizar atentados à bomba e espalhar o terror, aproveitou para fazer alguns ajustes de contas. Mas viu-se forçado a fugir.
   A PIDE tinha tomado nota da sua ação na Índia: além de informador, Casimiro revelara talentos especiais que podiam ser de utilidade. Não tinha a escolaridade mínima nem o cadastro limpo que a PIDE exigia aos seus chefes de brigada, mas isso não foi um entrave na hora de o admitir no seu antigo posto. Barbieri Cardoso, seu padrinho na instrução, levou-o para a Divisão de Informação numa época em que a PIDE andava entusiasmada com o golpe que preparava há dois anos.
    A Operação Outono estava para ser posta em prática e Casimiro Monteiro era o elemento que faltava para completar a brigada especial, o assassino implacável que deveria liquidar o General Humberto Delgado. Fê-lo com eficácia, mas ele e os cúmplices revelaram-se amadores ao esconder os cadáveres e as provas do duplo homicídio. O envolvimento da PIDE era evidente e a imprensa internacional apontou o dedo ao Estado Novo. Para Casimiro Monteiro, nada disso já interessava: em Abril de 1965 foi colocado em Moçambique.

       UM BULLDOG À SOLTA EM ÁFRICA

Em Fevereiro de 1968, Eduardo Mondlane dirigiu-se ao escritório da Frelimo na capital da Tanzânia para recolher correspondência. Saiu com uma encomenda especial, julgava ser um livro. Ao abrir o pacote acionou uma bomba que lhe decepou as mãos e cortou o tronco em duas partes. O governo português negou qualquer envolvimento no assassinato.
    Mas não tardou muito para surgirem as ligações entre o assassino de Mondlane e o homem que matou Humberto Delgado, Casimiro Monteiro, para isso teve a colaboração de Lázaro Nkavandame e Silvério Nungu, elementos da Frelimo com acesso ao presidente do movimento.
    Para Casimiro Monteiro, Moçambique era o território perfeito, não tardou muito que ganhasse entre as suas vítimas a mesma fama que tinha em Goa. Óscar Cardoso um agente que com ele privou, testemunhou a sua eficiência, descrevendo-o como um” bulldog. Dizia-se-lhe, faz e ele fazia,” resolvia as coisas à catanada.
    Em 1970 foi promovido a subinspetor, mas o 25 de Abril fez desabar o seu mundo. Fugiu para a África do Sul, onde os anos finais da sua vida não terão sido fáceis. Óscar Cardoso contou que, quando o encontrou em Richads Bay vivia do apoio da polícia Sul-Africana. Morreu em Janeiro de 1993. Quase cego e na miséria.
  
 ORIGEM: Revista Sábado, 2 de Outubro de 2014. Por Ricardo Silva

Coimbra, Outubro de 2014
Carminda Neves



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