quinta-feira, 25 de junho de 2015

LENDA DO ALFAGEME DE SANTAREM OU LENDA DO CONDESTÁVEL


A história tradicional do Alfageme de Santarém, que se tem contado de várias maneiras. Foi conservada para a posteridade através da cronica do Condestável, de autor desconhecido, mas referenciada por Fernão Lopes na Crónica de D. Fernando. Deu origem ao bem conhecido drama teatral de Almeida Garrett, apresentado a primeira vez em público no conhecido teatro da Rua dos Condes em 1842.
A que vou descrever, tem além dessas duas fontes, a narrativa de um campino do Ribatejo.
Ele chamava-se Fernão Vaz e era considerado, pelos entendidos como, o melhor Alfageme das redondezas, já seu pai tinha sido um grande artífice. À custa de muito trabalho e de alguns sacrifícios, Fernão Vaz juntara fortuna que lhe dera uma certa independência. E também uma certa soberba. Dizia-se até que fora por via dessa fortuna que se casara com ele a bela Alda Gonçalves, a qual andara em tempos, enamorada de D. Nuno Álvares Pereira.
Ora aconteceu que, certo dia, D. Nuno Álvares Pereira, cavalgando de longe veio parar à porta de Fernão Vaz.
D. Nuno saltou em terra e dirigiu-se ao homem que continuava a trabalhar, indiferente ao que se passava em seu redor.
 Eh, mestre alfageme!... Podeis correger-me esta espada?
O outro suspendeu o trabalho. Olhou e disse:
Senhor por hoje cheguei ao fim do meu trabalho… E bem preciso de descansar…
Olhou de novo e rematou com enfase:
  Mas, como se trata de vós, ordenai. Farei o que desejardes
D. Nuno Ávares Pereira sorriu.
   Obrigado, mestre alfageme… Disseram-me que ninguém possui habilidade igual à vossa…
No silêncio que se fez, olharam-se melhor. D. Nuno reparou então mais atentamente no homem que tinha à sua frente.
 Céus de onde conheço eu o vosso rosto?... Onde vi eu já esses olhos… irónicos e indiscretos?
Fernão Vaz inclinou-se numa vénia.
  Senhor D. Nuno Álvares Pereira…
   Pois… conheceis-me?
   E quem vos não conhece?
Avançou um pouco e disse em tom pousado:
   Vou ajudar a vossa memória, senhor. Eu sou o marido de Alda Gonçalves … agora D. Alda Vaz!
    O quê? Sois vos?... Bem me lembro agora, afinal… Principalmente dos vossos olhos, irónicos e indiscretos…
    Mudando o tom de voz, continuou com aquela segurança de ânimo que lhe dava uma irresistível autoridade:
    Mas aqui vos deixo a espada, Mestre Alfageme… Quando a dareis pronta?
    O outro segurou a arma e mediu-a longamente com o olhar.
    Amanhã de manhã podereis, vir, busca-la, Senhor D. Nuno… não me deitarei sem que deixe corregida e afiada como desejais!
   Obrigado, Mestre… até amanhã!

   Tal com prometera, Fernão Vaz passou a noite trabalhando a espada de D. Nuno Álvares Pereira. Era já manhãzinha quando ele recolheu aos seus aposentos. Apesar de todas as recomendações Alda estava ainda desperta.
   Só agora, Fernão Vaz?
   Ele estacou à porta do quarto ao escutar aquela vos doce mas autoritária.
  Pois não dormistes ainda?... Ficastes toda a noite à minha espera?
 Sim, meu marido… Tive medo! Felizmente, ouvia-vos a trabalhar na oficina…
 Mas afinal que trabalho foi esse que vos ocupou toda a noite?
  Sabeis lá!... Estive a afiar e a correger uma espada… para quem talvez não o devesse fazer…
  Que segredo é esse, meu marido?... De quem se trata?
 Pois escutai, Senhora… Estive a trabalhar para D. Nuno Álvares Pereira!
  Como? D. Nuno esteve aqui?... que vos desejava ele?
   Já vos disse… Estive a correger e a afiar a sua espada.
Um suspiro escapou dos lábios de Alda Vaz.
  Oh meu Deus!
O marido inclinou-se para ela.
  Vedes?... Vedes como ainda gostais dele?... Eu sempre temi este momento!
As mãos dele caíram, num desânimo sincero, ao longo do corpo.
  O vosso coração não me pertence!
Mas logo as mãos dela correram a segurar as mãos do marido, apertando-as, puxando-as para si, aquecendo-as com amor.
  Calai-vos, meu marido!... Não deveis dizer tontices… O meu coração é vosso, desde que casei convosco…
   Mas ficastes impressionadas, confessai!
   Ora, apenas porque receei por vós… às vezes, acreditei, o despeito transtorna os mais sensatos…
   E eu embora confie na nobreza de sentimentos, de D. Nuno, tive medo, muito medo!
   Felizmente que ele veio por bem!
Fernão Vaz endireitou-se, numa postura altiva.
 Eu disse-lhe que era vosso marido!
 E ele?... Que disse ele?
Nada disse, senhora!... Nem sequer perguntou por vós…
Alda Vaz pestanejou.
Já me esqueceu, decerto… como eu também já o esqueci a ele…
Sinto.me feliz, tal como sou!
Como vos adoro, senhora!... Hoje mais que nunca!

   Na manhã seguinte, conforme ficara combinado, D. Nuno Álvares Pereira veio à oficina logo ao romper do sol. O Alfageme já o esperava. Mal o viu, correu para ele.
   Aqui tendes a espada, senhor.
D. Nuno examinou-a atentamente como bom conhecedor. E o seu rosto refletiu alegria e satisfação.
  Belo trabalho, mestre Alfageme… está perfeitíssimo!
  Eh escudeiro, pagai ao mestre o que ele vos pedir!
Perdão, senhor D. Nuno… se mo permitis, eu por ora não quero, de vós, nenhum pago.
  Mas porquê?...  Estais louco, decerto!
  É o que vos digo, senhor… Nada quero receber.
  Ide embora, que em breve voltarei conde de Ourem… e então me pagareis o que eu merecer. Senhor conde!
 Não me chameis conde, porque eu não o sou, mestre Alfageme…
   Deixai que vos pague tudo o que quiserdes…
   Não é preciso, senhor… Eu só vos disse a verdade… E assim será cedo, se Deus quiser!
E Deus quis que se cumprisse a profecia do Alfageme de Santarém. Mercê dos seus feitos de valentia e heroísmo, perante o inimigo, em número muito superior venceu-o sem remissão.
Perante este feito el-rei D. João I agraciou-o com o título de conde de Ourém.

    Entretanto em redor da vida de Fernão Vaz, tinham-se amontoado muitas nuvens de tormenta. Os seus inimigos arrastados pelo despeito e pela maldade, resolveram acusá-lo publicamente de traidor da Pátria.
   Fernão Vaz sentiu-se desamparado. Os fregueses desapareceram, apavorados. E ele acabou por ser preso, vergado às infames acusações que lhe faziam.
   Triste e desesperada, D. Alda chorou a sua dor. A sua dor e o seu protesto.
  É falso! É mentira! Meu marido está inocente, mil vezes inocente! São os outros que nos querem mal, por nos verem ricos e felizes…
   Mas de nada valiam as palavras e as lágrimas de D. Alda Vaz. O Alfageme de santarém continuou preso e os seus bens totalmente confiscados. Vinha próxima a hora da morte!

  Como ultimo recurso, a jovem esposa decidiu procurar pessoalmente D. Nuno Álvares Pereira, o novo conde de Ourém.
  Ele não a fez esperar. Mas quedou-se boquiaberto quando a viu surgir na sua frente.
   Senhora! Vós aqui… e nesse estado? Por Deus!... Porque chorais, senhora?... que vos aconteceu?
  Senhor D. Nuno, sabei que prenderam meu marido… imaginai, senhor! Acusam-no de traidor!
   Sim, acusam-no de traidor… mas ele está inocente!... Absolutamente inocente!
   Senhor… ainda acredita em mim?
   Ainda credito em vós, sim!...
   Houve tempo em que talvez não acreditasse… Foi muito forte a desilusão de amor que me fizestes sofrer…
  Senhor… por tudo vos peço que esqueçais esses tempos!...
  Ele amparou-a docemente, obrigando-a a sentar-se. Depois sentou-se também diante dela e falou calmamente.
Bem sei, D. Alda Vaz… Tendes medo que o despeito me domine o coração, não é verdade?...
Descansai!... Eu não posso nem devo olvidar que a profecia de vosso marido saiu certa!... Hoje sou conde de Ourém, tal como ele me disse certo dia, em que não sonhava sequer com esse título…
Tem graça D. Alda Vaz… Lembro-me agora que vosso marido me disse também, nessa altura, que depois de eu ser conde de Ourém lhe pagaria o trabalho conforme ele merecesse…
 Pois muito bem: vou pagar-lhe!
  Senhor! Que ides fazer?... Matá-lo?
Sorrindo, ele respondeu apenas:
   Não. Vou salvá-lo!
  Foi fácil a D. Nuno conseguir o seu intento. Tendo narrado tudo a D. João I, depressa ele conseguiu o perdão real para Fernão Vaz. E montado no seu corcel mais ligeiro, partiu velozmente, chegando bem a tempo de salvar o Alfageme de Santarém da forca, que mal podia acreditar em tamanha felicidade.
D. Nuno, juntou o Alfageme a sua esposa, num abraço de amor dizendo:
   Assim se cumpriu a vossa profecia, mestre Alfageme!
   É verdade senhor… já sois conde e afinal pagastes muito melhor do que eu esperava!...
 Sabeis que mais, mestre Alfageme?... Quero armar-vos cavaleiro, para compensar as injustiças que vos foram feitas!
  Não, senhor D. Nuno, não posso aceitar tal honra. Eu sou filho de Alfageme, de um Alfageme que sempre colocou o seu carater acima de todas as coisas da vida… por isso D. Nuno serei Alfageme com meu pai. Honrado.
  Aprovo as vossas palavras, embora elas contrariem um desejo que me seria muito grato. Já que mais nada posso fazer, desejo-vos muitas felicidades para vós e para vossa esposa.
  O mesmo sorriso de sempre abriu-se no rosto de Fernão Vaz.
   Obrigado, senhor… Eu bem sabia que podíamos confiar em vós!
Do alto da sua montada, D. Nuno ergueu o bração num gesto de saudação.
Ide, amigos!... Ide, e que Deus vos proteja!
Com um último adeus, mas sem dizer mais palavra, o Alfageme e sua mulher seguiram de abalada, a caminho de Santarém.
 D. Nuno ficou afagando a sua espada de combate, que seria daí em diante a sua companheira e a sua dama!

FONTE: LENDAS DE PORTUGAL: Gentil Marques.
               Círculo de Leitores, VOL 2, 1997





   




Coimbra, junho de 2015
Carminda neves



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